Tuesday 4 November 2014

As mulheres do mundo da água no período de estiagem. O Pantanal na seca.

Relatório de viagem São Pedro de Joselândia 29 de outubro a 02 de novembro de 2014
Rosana Manfrinate


Nossa viagem de campo para São Pedro de Joselândia, teve início no dia 29 de outubro, seguimos de caminhonete, pela estrada de terra esburacada, com pontes de madeira mal cuidadas e de travessia perigosa, mas que segundo os critérios locais “tava boa” pelo fato de não estar alagada, e permitir que nela possa se transitar com caminhonetes com tração, Van que vão deixando pedaços pelo caminho, tratores, caminhões, cavalos e boiadas, nunca carros pequenos.
Figura 1-Estrada que leva a Joselândia/29out2014-foto RosanaManfrinate
O Solavanco proporcionado pela estrada, a poeira, se misturaram a ansiedade do trabalho que nos esperava em campo. A pesquisa se delineava no pensamento ao mesmo tempo em que a estrada abria espaço para a nossa chegada na comunidade, assim na nossa ida física e material a Joselândia tinhamos escolhido um modo mais prático: a caminhonete, mas na ida ideológica e epistemológica, a intenção foi ir no caracol traçando a cartografia do imaginário, demorando em cada entrevista, conversa e observação, deixando nosso rastro se misturando a terra em que passávamos.
Abordar um campo investigativo exige uma enorme responsabilidade e grau de compromisso para além de nós mesmos. (...) Uma aventura em risco, onde cada qual escolherá o seu itinerário de pesquisa. Fixando o destino, é possível escolher o meio de transporte pelo qual queremos chegar (SATO, 2011.p.545)

Essa viagem de campo no período da seca foi planejada para que pudéssemos conhecer e conversar com as mulheres de partes mais distantes de Joselândia, como a pimenteira, Matão e Santana que ficam isoladas no período da cheia.

Objetivo das entrevistas foi o de conhecer o cotidiano do trabalho doméstico dessas mulheres e seu modo de vida, e como elas entendem as mudanças climáticas, como apresentam suas identidades, e seu relacionamento com a água no dia a dia.

Esse trabalho de campo foi muito intenso e com bons resultados, pois consegui nesses dias conversar com várias mulheres dos locais que nem sempre temos acesso.

Entre elas está a Dona Gonçalina, que em seu pequeno sítio faz queijo e doces para vender, e com sua voz serena e modos elegantes contou sobre sua vida e seu cotidiano, mostrando que a maior parte do rendimento da família vem do seu trabalho, aprendido com a mãe como uma obrigação doméstica. Para ela é apenas uma de suas atividades, porém essas atividades cotidianas das mulheres tem ganhado cada vez mais lugar na economia brasileira, como uma fonte segura de melhoria de vida para muitas famílias, demonstrando assim a importância desse trabalho, para Bachelard conseguimos ver cores e luzes invisibilizadas “figuras suaves e fortes saem da sombra” (p.13).





Figura 2-Dona Gonçalina-31out2014-Foto Rosana Manfrinate

Também pude participar de vários momentos em espaço coletivo das mulheres: oficina de artesanato, e encontro da Irmandade de Apostolado do Sagrado Coração de Jesus. Esses espaços se configuram como espaços de fé, de encontro, de discussão e diálogos e de acordo com Brandão também de aprendizado pois: “Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar” (BRANDÃO, 1985, p. 7).

Figura 3-Oficina de artesanato-31out2014-foto Rosana Manfrinate

Figura 4 Encontro da Irmandande do Postolado do Sagrado Coração de Jesus.
31out2014 -Foto Rosana Manfrinate


Figura 5 Dona Filhinha 01out2014-Foto Rosana Manfrinate

Consegui ainda uma entrevista muito importante com Dona Filhinha, uma senhora já bem idosa, que foi uma requisitada na comunidade por seus trabalhos de parteira, benzedeira e “achadora de poço de água com galho de goiabeira”. Apesar de Dona Filhinha já estar muito debilitada por conta de um derrame, e ter dificuldades de fala, sua memória é primorosa, e sua generosidade em participar da entrevista cativante.
Ela conta que a necessidade de ajudar as vizinhas na hora do parto, a fez aprender a profissão de parteira, a necessidade da falta de assistência a comunidade também a fez se tornar benzedeira e a achar água, mas a essas duas atividades ela diz que nem todo mundo consegue, pois é um Dom recebido de Deus, e que nunca sequer recebeu um centavo por nada que ajudou a fazer, pois não se cobra pelo trabalho de Deus. Assim encontramos eco no pensamento de Muraro(1998)
Desde a antiguidade as mulheres foram as curandeiras populares, cultivadoras de ervas, parteiras, as que conheciam os segredos do corpo, as que abençoavam na hora do nascimento e as que rezavam na hora da morte. Estavam sempre prontas a usarem seus saberes, recebidos de gerações anteriores, para ajudar os desvalidos, tornando-se imprescindíveis na vida das pessoas pobres e sem assistência.(p.34)

Ao todo foram entrevistadas 08 mulheres, e participei de 03 encontros coletivos com as mulheres. Observei a comunidade em outra época do ano e em outras necessidades impostas pela seca. Essas entrevistas foram gravadas e serão transcritas e interpretadas, considerando as observações e servirão como base para pensar a vulnerabilidade feminina frente as injustiças ambientais no território.
Nesse encontro da pesquisa com Joselândia, além do ciclo da seca e da cheia, dessa vez pude também reverenciar o ciclo da vida e da morte, infelizmente uma das idosas, talvez a mais espirituosa, que me cedeu entrevista logo nas primeiras vezes que fui a Joselândia faleceu no dia 03 de outubro. Dona Maria da Conceição, nos seus 85 anos de vida veio a Cuiabá para resolver assuntos de sua aposentadoria e segundo os médicos não resistiu ao calor que fazia nesse dia. Longe de seu Pantanal Dona Maria tristemente nos mostrou o que tanto a falta de estrutura, e o aumento de temperatura podem causar, e quem é mais vulnerável a esses problemas.
Mas na sua longa sabedoria de vida Dona Maria ensinou sempre um exemplo de força e amor pelo pantanal. Quando perguntei qual elemento da natureza do pantanal ela gostaria de ser, ela mostrou toda a sua irreverência dizendo: “ eu queria ser o Jacaré que come a piranha que come a gente”, ou seja dos fortes o mais forte. E é assim que lembraremos dela.


Referências:
BACHELARD, Gaston. O Direito de sonhar. São Paulo: Difel , 1985.
MURARO, Rose Marie. Breve introdução histórica. In: KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Record; Rosas dos Tempos, 1998. p. 5-17.
SATO, Michèle. Cartografia do Imaginário no mundo da pesquisa. In: ABILÍO, Francisco Pegado. Educação Ambiental para o Semiárido. Ed. Universitária. João Pessoa, 2011


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