Monday 23 April 2012

‘Para ensinar ciência, levo os alunos à beira do rio’

combate ao racismo ambiental
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‘Para ensinar ciência, levo os alunos à beira do rio’, diz professora indígena

Por , 21/04/2012 07:46
Francisca Arara, professora indígena do Acre (Foto: Divulgação/Comissão Pró-Índio do Acre)
Na tribo Arara Shawãdawa, no Acre, crianças têm aula de segunda a quinta. As sextas-feiras são reservadas para o aprendizado na aldeia com os pais.
Ana Carolina Moreno, do G1, em São Paulo
As 78 crianças e adolescentes da aldeia dos Arara Shawãdawa, do Acre, encerraram nesta quinta-feira (19) mais uma semana de aulas na Escola Indígena Arara, que fica na terra da tribo, a mais de 500 quilômetros da capital Rio Branco. “A escola funciona das 7h às 11h30 quatro dias por semana, de segunda a quinta. Na sexta-feira a gente deixa os alunos liberados para fazer atividades com os pais e mães, como caçar, pescar e trabalhar no roçado”, explicou Francisca Oliveira de Lima Costa, professora por vocação e atualmente coordenadora da Organização de Professores Indígenas do Acre.
A carga horária é apenas uma das diferenças entre a educação indígena e a escola formal. Segundo Francisca, o planejamento da escola é decidido coletivamente pela comunidade Arara, e inclui tanto o conteúdo do currículo definido pelo governo quanto os ensinamentos sobre a história e a cultura regionais. “A educação diferenciada é diferenciada porque trabalha vários contextos, dependendo da escola e da vida do povo”, afirmou ela ao G1.
Para isso, além de gramática, dicionários, livros didáticos e DVDs, a Escola Indígena Arara também conta com cartilhas indígenas e um recurso que nem toda escola no Brasil tem à disposição: a natureza. “Não precisa ficar só no espaço da escola. Para ensinar ciência, levo os alunos ao rio. Você tem o rio, a floresta, os animais, pode estudar as coisas reais, não só do livro. Se quer trabalhar arte, leva a criança para tirar o cipó para fazer a tecelagem, tem a arte-ofício, o reaproveitamento de madeira, tem muito trabalho que você pode fazer.”
Na escola do povo Arara trabalham quatro professores, um diretor, duas zeladoras e um barqueiro. “O barqueiro é quem transporta os alunos que moram mais longe quando o rio está alagado”, diz Francisca.
Crianças da tribo Kaxinawá durante atividade na horta da aldeia (Foto: Comissão Pró-Índio do Acre)
A professora, conhecida na cidade como Francisca Arara, e na aldeia como Diaka, seu nome na língua da tribo, explicou que até as atividades com os pais, às sextas-feiras, são incluídas no currículo escolar. “E aí não fica a rotina cansativa, é legal você sempre ter a referência.”
“Se a aula é de geografia, dá para ver onde eles foram caçar, trabalhar com eles a distância de terra entre a aldeia e onde pegaram a caça.” Segundo ela, as crianças precisam ajudar com o trabalho da aldeia, que tem cerca de 150 habitantes, porque o grupo não usa dinheiro e tira seu sustento da terra. “O trabalho quem faz são os jovens, as crianças ficam à vontade para ajudar a mãe, ajudam a lavar a roupa, acompanham a mãe na roça. A criança vai aprendendo no dia-a-dia com os pais.”
A avaliação também é diferenciada, e a nota de cada aluno vai muito além de uma prova. “Não é só porque lê e escreve que ele vai ser bem avaliado, o que vale é a competência dele em vários aspectos, seja na escrita, seja no comportamento, se ele participa, é trabalhador, bom caráter.”
A Escola Indígena Arara foi construída nos padrões do governo estadual e possui duas salas de aulas. As crianças são divididas por idade: do primeiro ao quarto ano do fundamental, e do quinto ao oitavo. No Acre, segundo Francisca, as escolas indígenas ainda não optaram por aderir ao ciclo de nove anos no ensino fundamental.
“Os alunos vão saindo da escola à medida que vão casando. As meninas em geral casam com 13 e 14 anos, os homens com uns 17 ou 18″, explica Francisca. Segundo ela, cada dia da semana é dedicado a uma matéria, como matemática, ciência, história, geografia, artes, língua portuguesa e língua indígena, mas existe forte interdisciplinaridade entre elas.
Formação de professores
Segundo dados do Censo Escolar 2010 do Ministério da Educação, o Brasil conta com 175.032 estudantes indígenas matriculados em 2.755 escolas, atendidos por 14.601 professores. No Acre, em 2010, 389 professores davam aula para 6.149 alunos em 177 escolas indígenas, todas na zona rural. Francisca, hoje com 34 anos, começou a ser preparada para a carreira docente quando cursava o quinto ano na escola da aldeia. Ela chegou a lecionar durante oito anos antes de começar a trabalhar na Organização de Professores Indígenas do Acre.
Atualmente a professora cursa o último ano de formação docente para indígenas na Universidade Federal do Acre (Ufac). Segundo ela, cerca de 50 professores cursam a graduação na Ufac para continuar melhorando a qualidade de ensino desses alunos.
“O modelo da educação escolar indígena tem que conhecer os dois mundos, como é o mundo de fora e o nosso mundo também”, afirma. Por um lado, os índios aprendem na escola a ler, escrever e entender o mundo exterior para não sofrer o choque cultural do passado. “Ele aprende a se sentir valorizado e a valorizar o conhecimento para a gente construir um mundo melhor para todo mundo, não só pensando no individualismo, na competição para o mercado de trabalho. A escola não é para preparar para o índio ir para a cidade”, diz Francisca.
Do outro lado, as aulas contemplam a preservação da cultura indígena, o uso de recursos naturais e a sustentabilidade. “Eles se preparam para dar continuidade aos projetos que nossos pais fizeram, à produção de qualidade. O mundo pensa muito só em dinheiro em papel. Isso é bom também, mas a gente não vai viver só de dinheiro, tem que pensar na nossa vida, ter água boa para beber, estar bem organizado socialmente, ter a nossa língua, tradição e família.”

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