Sunday 27 April 2014

Relatório de Viagem de Campo Rosana Manfrinate


Pesquisadora Rosana Manfrinate.

Relatório de viagem de pesquisa de campo do projeto Identidades e emancipação das mulheres do campo:  políticas, saberes e educação, dia 22/04/2014 – Lugares visitados Quilombo Mata Cavalo- entrevista D. Estivina e Poconé – entrevista D. Cleide.
Em nossa ida a Mata Cavalo, entrevistamos Dona Estivina, muita acolhedora, ela está sempre pronta a nos contar um pouquinho mais sobre seu cotidiano e seu mundo. Nossas perguntas nessa entrevista giraram em torno de seu trabalho na roça da família e sobre as mudanças ambientais que vem ocorrendo no quilombo, mais precisamente em relação a água.
 
Figura 1:Dona Estivina. Mata Cavalo 22/04/2014 Foto: Giseli Nora

Dona Estivina nos contou, que desde criança trabalha na roça, aprendeu tudo com a avó materna, desde plantar o alimento até o cuidado com o seu preparo na cozinha. Ela narra que a avó mostrava o jeito certo de colocar os tocos de mandioca na terra na hora de plantar “tem que ser deitado” dizia a avó, “assim saem muitas raízes e a terra fica fofa e mais úmida, a mandioca gosta e cresce bastante”. Com movimentos carinhosos no ar ela encena como cobrir de terra os brotos da mandioca.
O cuidado do ensinamento da avó não terminava no plantio, mas ia além, tratava-se do preparo desses alimentos cultivados. Dona Estivina aprendeu que a comida tem que ser preparada com amor e atenção por aqueles que dela se alimentarão, nas palavras de sua avó, “quem trata os outros bem, quem sabe trabalhar e conviver com as pessoas, sempre vive bem”.
Nesses ensinamentos a avó transmitiu a Dona Estivina, o conhecimento se sua observação do mundo em que vivia e a sabedoria do cuidar com afeto e amor assim como nos sugere BRANDÃO:
Fomos feitos para construir este lugar feliz, pouco a pouco, na vida de cada dia e de maneira irreversível, por nossa conta e em nome do afeto do amor que nos une e da felicidade de todos e sempre, que é o nosso destino humano."  (p.24)
 
            A roça atual no fundo de sua casa também é apresentada com muito orgulho, ela diz estar em um local privilegiado, próximo ao rio, por isso a umidade segue para além da Mata Ciliar e suas terras ficam férteis. Segundo ela, haviam mais lugares como o que ela tem hoje nas terras do quilombo, mas que por causa do garimpo e do gado eles foram acabando, sendo necessário hoje em dia inclusive cavar poços artesianos para o abastecimento.E muitos desses secam durante o período de estiagem. Mostra assim sua reverência a importância da água para sua sobrevivência no território, e sua percepção da mudança que vem ocorrendo no ambiente do quilombo. Assim concordamos com Bachelard quando ele sugere que o poder que a água tem tanto físico como fenomenológico:

 Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. Á água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável (BACHELARD, 2002.p.10).

            Da sua roça doméstica, Dona Estivina tira ainda o excedente para vender. Ela mesmo faz farinha, melado, vende banana, abacaxi e milho verde. E diz sempre tomar o cuidado, para que não seja usado agrotóxico em suas plantas, aqui narra ela, “não deixo usar nada de fertilizante ou veneno, nós usamos os restos das folhas e esterco dos animais, Fertilizante faz a planta crescer rápido, mas eu penso que cada um tem seu tempo certo para crescer”.
 Mostrando assim que no mundo atual, com o tempo corrido, e de coisas instantâneas, é uma ligação com a tradição e a memória, conforme nos aponta Bachelard:

 o tempo, limitado ao instante, nos isola não apenas dos outros, mas de nós mesmos, posto que rompe com nosso passado mais querido. o tempo tem várias dimensões; o tempo tem uma espessura. Só aparece como contínuo graças à superposição de muitos tempos independentes. Reciprocamente, qualquer psicologia temporal unificada é necessariamente lacunar, necessariamente dialética (BACHELARD, 1994:87).

 

Como um de seus desafios, para melhorar a situação de suas roças, Dona Estivina aponta a burocracia para se vender seu produtos, em primeiro lugar está a situação ainda não resolvida da falta de documentação da terra, a falta de assistência técnica rural e projetos.
A segunda entrevista foi realizada em Poconé, com Dona Cleide, bordadeira de uma cooperativa de artesanato. Essa cooperativa é especializada em bordados com o método chamado Arpilharia, que consiste em confeccionar peças sobreponde tecidos, criando imagens como se fosse um quebra-cabeças. Essas peças recriam o ambiente pantaneiro e suas belezas.
Dona Cleide nos conta, que ela aprendeu esse bordado num curso que foi oferecido como alternativa de renda para as mulheres do município. “Eu comecei a fazer o curso e logo aprendi, tive paciência de fazer”.
A paciência também está na inspiração das peças, Dona Cleide Narra que nasceu e se criou no espaço pantaneiro, e que adora estar de barco por entre os rios, esse momento, ela observa os animais, seu comportamento, as flores, a terra e a água, e assim pode retratá-los em seus bordados. Do mundo vivo que pulsa no pantanal Dona Cleide assume o desafio de reproduzi-lo como um poema em suas peças que conta a história da natureza, “O instante poético é, pois, necessariamente complexo: emociona, prova—convida, consola --, é espantoso e familiar. O instante poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. (p.184).
Das mudanças no pantanal, Dona Cleide demonstra preocupação com o excesso de chuva e as água que dessem quando são abertas as comportas do Usina de Manso, segundo ela, os tempos da seca e cheia estão misturados, “seca é chuva, e chuva e seca”.

Do trabalho na Associação Dona Cleide nos mostra que apesar de representar sim uma boa fonte de renda, sua forma de administração como associação ainda precisa ser melhorado, pois ainda na relação dos associados, os papeis são confundidos com o de chefe e funcionários, aos moldes capitalistas.  Faltam então políticas para que se possibilitem novas visões de trabalho, conforme consideramos as afirmações de ADAMS (2010) que sugere que essas transposições não serão espontâneas, ao contrário, são construídas historicamente, e é uma tarefa coletiva na conquista e no reconhecimento de direitos e da cidadania. E é nessa busca de alternativas e possibilidades de trabalho considerando o território, a cultura e a interação com a natureza que essas mulheres constroem “outra economia” (ADAMS, 2010), que difere da economia exploradora da mão de obra e que não é depredadora da natureza.



 
Figura 2: Dona Cleide apresenta seus bordados. Poconé 22/04/2014. Foto: Giseli Nora
 

Dona Cleide acredita também que seu trabalho ajuda a cuidar do pantanal, pois quando algum turista adquire uma de suas peças, está levando também a imagem de um momento e de e de vida, contado pelos olhos de quem enxerga a beleza e a vida desse território. Para ela quem “consegue ver essa beleza, nunca mais vai destruir nada”, aproximando assim de Brandão quando aponta que Brandão “Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar” (1985, p. 7). 

Referências: 

ADAMS, Telmo. Educação e Economia Popular Solidária: Mediações Pedagógicas do trabalho Associado. SP. Idéias & Letras, 2010.
BACHELARD,Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Trad.Antônio de Pádua Danesi. SP. Martins Fontes. 2002.T

BRANDÃO. Carlos Rodrigues. A Educação como Cultura. SP. Brasiliense. 1985.

 

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